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A última esquerda

Oxfordshire, Inglaterra, 1905.
Ainda tinha as vistas ofuscadas pelo brilho dos holofotes quando veio o primeiro. Um poderoso direto de direita no olho esquerdo o desnorteou. Não esperava ser ignorado no cumprimento, ainda que fosse um ato nada-incomum. Esticou as luvas em respeito ao adversário - em retorno, desdém. O soar do gongo, os gritos da multidão, seu pai lhe assistindo na plateia, o suor escorrendo pelas sobrancelhas. Desconcentrado e, já, desorientado.
Foi uma surra todo o primeiro assalto. Após o primeiro golpe, sentiu o baque e veio a avalanche de braços. Sequer entendeu como conseguiu se manter em pé. Em sua mente, apenas uma pergunta ecoava: "como diabos eu vim parar aqui?".
Um verdadeiro massacre! Gritos, gritos e mais gritos! "Levante a guarda!", "reaja!", "saia das cordas!" de seu corner, "vamos, Baker!! Acabe com ele!". Johnson não ouvia nada. Foram 3 minutos de violência. Os minutos mais longos da vida de Johnson. O árbitro hesitou e pensou em terminar a luta por nocaute técnico. Não seria estranho. Sorte não tê-lo feito.
No intervalo, cada um em seu corner. Johnson olhava seu adversário do outro lado do ringue. Intacto, confiante, soberano. Cheio de si. Enquanto ele mesmo era a ruína em pessoa. Seus ombros pesavam, as costelas doíam, não abria mais o olho esquerdo, inchado desde o primeiro ataque. Mas o maior fardo era lidar com a decepção do pai.
- Você está louco? Está dormindo? Merda! Levanta essa guarda! Se movimente, Ernie! - gritou-lhe seu treinador.
Seu pai na plateia, nervoso, com seu velho chapéu nas mãos. Os olhos lacrimejantes, as pernas trêmulas, as barbas feitas, e vestido em seu melhor terno, sozinho, vendo seu filho apanhar.
Ernie Johnson, completamente desconhecido de seu adversário, o lendário Francis Baker. Baker era um inglês de perfil operário, mas com pose de aristocrata. Era tanta segurança de si mesmo que chegava a assustar.  As luzes dos holofotes refletiam sobre ele de tal modo que parecia um fantasma branco se movimentando sobre o ringue. Johnson era apenas mais um desafiador, vindo do Harlem, Nova Iorque, nos EUA. Baker não se preocupava com quem ele era, apenas sabia que continuaria ostentando o cinturão dos meio-pesados por mais alguns meses sem grandes dificuldades. Seus empresários não pensavam bem assim. Já tinham tido a oportunidade de assistir a algumas lutas de Ernie Johnson nos EUA e sabiam de que este negro era capaz. Porém, estava tudo sob controle.
Começou o segundo assalto e o fantasma veio em sua direção. Babava. Uma fúria incontrolável na potência de seus golpes, os olhos saltados e a respiração intensa. Ernie apenas pôde fazer o que seu treinador o aconselhara. Defendia-se como podia. Alguns golpes acabavam entrando, era inevitável, mas conseguiu diminuir a intensidade do inglês. Era fundamental que conseguisse manter-se em pé. Mas estava conseguindo até mais do que isso. Agora, conseguia acertar alguns jabs, afastando Baker de si e, assim, saindo de perto das cordas. E então, foi quando arriscou revidar com um cruzado, foi surpreendido com mais um direto, quase tão potente como o primeiro que levara no início da luta. Desarmado e em meio ao giro de seu golpe, beijou a lona. Atordoado, ouviu o árbitro abrir contagem. Mais um momento de sorte em meio ao turbilhão que estava sua cabeça: soou o gongo antes dos 6 segundos da contagem e Ernie Johnson se reergueu. "Estou bem!", respondeu ao juiz.
- Você está melhor! Você está melhor! - dizia o treinador. - Segure um pouco mais, não se deixe levar pela empolgação. Ele vai se cansar, e aí você vai mostrar o que tem. Volte lá, fite-o nos olhos, mostre-se tranquilo. Seja tranquilo.
Olhou para seu pai. O velho de cabelos brancos, contrastados à pele, o chapéu em mãos, todo amassado. Mas, desta vez, um olhar mais firme. Não estava mais assustado, então, sorriu para o filho. Era o que Ernie mais precisava. A confiança de seu velho, a força de seu olhar e a tática de seu treinador. Seria o fim da hegemonia branca no boxe. O primeiro contraste de cinturões.
Começou a terceira parte da luta. Seu treinador estava certo. Francis Baker estava cansado. Veio em sua direção caminhando, pela primeira vez na luta. Parecia cauteloso, estava receoso. Continuava respirando ofegante, desde o intervalo. Aquela pedra preta não cairia fácil, constatou. Acostumado a lutas curtas de um ou dois assaltos, encontrou um grande desafiante. Johnson era seu complemento. Baker reconheceu em Johnson sua própria força e se conteve. Quase um minuto de terceiro round e sequer um golpe, de nenhum dos lados. A plateia já estava impaciente. Alguns esboçavam vaias, outros começavam murmúrios perguntando ao vizinho de assento o que se passava. O velho Johnson assistia seu filho a caminhar tranquilo sobre o ringue. Então, quando menos se esperou, Baker resolveu atacar.
O medo já era evidente, a confiança já se transformara em dúvida. Precisava se afirmar. Assim, como um touro abriu sua guarda e, ao invés de acertar seus chifres no toureiro, levou a primeira espadada. Um hook de esquerda, na costela direita, certeiro, preciso e potente. Sentiu o golpe e o acusou. Envergou-se pra direita como um arco. E, assim, ofereceu o rosto, para, mais uma vez, ser golpeado pela pesada esquerda de Johnson, sendo jogado ao chão como nunca antes fora. A plateia, perplexa e tão assustada quanto estava Baker, levantou-se e permaneceu calada. Todos olhavam à cena, extasiados. O juiz correu até o inglês para abrir contagem. Desnecessário. Já estava em pé novamente. Porém, diferentemente de Ernie Johnson, seus joelhos pareciam bambos, frágeis. Foi o que viu o treinador do americano. A luta voltou, mas Johnson apenas estudou seu adversário, que hesitava em atacá-lo.
Soou o gongo. Cada um pro seu corner. Agradeceu Baker.
- Simples! Continue assim, garoto! Mostre estes dentes, morda com força! Ele sentiu seus golpes, ele não vai aguentar muito mais do que isso. Eu não aguentaria! Você não aguentaria! Ele não vai aguentar!! Continue assim, logo menos, ele cai novamente e o cinturão é seu. Mas não esqueça, ele tem um direto perigoso! Você sabe bem disso!
Seu treinador estava eufórico, muito mais que o próprio Ernie. Ernie sentia-se firme, estava preocupado apenas com seu pai. Mas seu velho já estava tão mais confiante que já havia largado o chapéu no assento e via a luta em pé, empolgado. Assim, o juiz chamou os dois ao centro do ringue para dar início ao quarto assalto.
Ambos se movimentavam, de um lado para o outro do ringue. Ernie sempre mais distante das cordas, Baker sempre com a guarda erguida ante o rosto. Olhava Ernie por trás das luvas, que se aproximou. Começaram os golpes trocados. Ambos batiam, ambos defendiam, mas nada mais intenso acontecia. Pareciam apenas se testar, aguardando o momento certo para agir, para infringir o golpe derradeiro. Baker batia e se perguntava o que acontecia ali. Não compreendia a luta, difícil como nunca antes.
Mas um grande desafiador deve ser, via de regra, ousado. Ernie Johnson não seria diferente. Assim, após uma troca de porradas despretensiosas, soltou a guarda. Seu treinador foi à loucura. Arregalou os olhos. O público começou a gritar, eufórico, histérico. E, numa fração de segundos, foi que Baker reagiu. Um belo e esmagador direto de direita. Um golpe finalizador...
Se acertasse.
Johnson esquivou-se do golpe e iniciou uma chuva de socos. De todos os lados. Baker não tinha reação. Nada era tão pesado, mas parecia ser interminável. Até que mais um hook de esquerda acertou às costelas do inglês, que, novamente, curvou-se. A sequência despretensiosa havia aberto o caminho pro fim. Uma tempestade negra cobria o inglês, que era arremessado para frente, para trás e para os lados a cada martelada. Ernie não parou de bater, até que, em um gancho de esquerda, jogou Baker contra as cordas, de costas, e preparou-se para finalizar a luta. Os gritos vinham de todos os lados, incompreensíveis.
Então, o tempo parou - e parou com um forte estalo. Todo o ginásio silenciou imediatamente. De onde veio o som, ninguém soube dizer. Mas no ringue, Ernie Johnson estava no chão. Francis Baker, de joelhos, tentava tirar as luvas, desesperadamente. Johnson sangrava. Uma poça de sangue circundava sua cabeça. Baker gritava por socorro. Fora baleado. De onde veio o disparo, não se soube. Ninguém parecia saber. A imprensa não destinou muitas páginas sobre o assunto. A polícia não abriu inquérito investigativo sobre o caso. Contentou-se em alegar que, apesar do atleta, ninguém mais saiu ferido do local e que estavam à procura do atirador (sem que fizessem ideia de onde o tiro veio).
Para o mundo, Francis Baker ainda era o campeão. Tudo continuava em seu perfeito estado. Tudo em ordem para todo o mundo, menos para o velho Johnson e Baker, que sentira a última esquerda de Ernie Johnson.

 

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Todas as personagens são fictícias.

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