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Liberto, à chuva

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Ele voltava do trabalho, cansado e cabisbaixo. Que dia pesado. A pasta na mão, o resumo do dia: vazia. O céu estava aberto, quase nenhuma nuvem, mas dentro do escritório não bate sol, e o som dos pássaros não se faz ouvir por trás dos telefones, impressoras e cobranças.
O dia começara às 8h da manhã e não deu trégua. O ar-condicionado tornava o ar rarefeito. O chefe aos berros, só piorava, roubando o resto de ar que ainda havia na sala. O almoço demorou a chegar e, com ele, não veio sossego. Muito do contrário: as fofocas, as reclamações despretensiosas - todo mundo reclama e ninguém reivindica, as ladainhas e papos vazios, ocos, preguiçosos. Tudo dava àquela segunda-feira o ar-viciado e carregado de estantes empoeiradas e cheias de pastas e arquivos inúteis e pré-históricos.
À tarde, o relógio parou, como costuma ser às segundas. Tudo fica mais lento, tudo cheira a mofo, toda solicitação é urgente e todo telefone toca desesperadamente. Enfim, o dia chegou ao fim.
Saiu do escritório, um semblante derrotado. Parecia vir de algum filme de guerra. Tomou seu rumo. Pegou ônibus lotado. Sentar era nada mais que "sonho de infância". O caminho todo, de pé. Uma hora e vinte minutos: de pé, segurando firme no apoio mais próximo. Já deveria ser suficiente por esta segunda-feira, mas não. Ainda lhe aguardava longa caminhada. E então, pouco antes de descer, começou a chover. Não, a chuva não o esperaria chegar à sua casa, e também não poderia chegar antes, enquanto ainda estava no escritório. Tinha de ser agora. As janelas foram fechadas, os vidros ficaram embaçados, o calor abafado e, a ele, a dúvida entre o que seria pior: esperar até seu ponto dentro do ônibus ou descer um pouco antes e encarar a chuva.
Desceu, e com ele, mais forte desceu a chuva. Tentou, em vão, correr. Mas é tão equivocado quanto tolo tentar fugir da chuva. A cada passo, um leve escorrego. Cada escorrego, um sinal, que só entenderia caso decidisse não mais correr. Mas sinais só são corretamente interpretados depois que se fazem óbvios. Assim, continuou correndo até que percebeu que estava molhado demais e não tinha mais razão de correr.
A chuva lhe abraçou. Envolto em água, sentiu-se por inteiro. Enfim. Não sentia aquela dor de cabeça que lhe lembraria estar vivo. Nem o ouvido cansado ou os olhos que fecham sozinhos de esgotamento. Sentiu-se vivo por outra razão. Era a água que lhe escorria no rosto e cobria o corpo, suave, leve e fria, como um acalento, a um doce redespertar de seu íntimo perante a vida. Como se cada gota lhe purificasse, lhe elevasse, lhe libertasse e devolvesse alguma razão qualquer para, efetivamente, persistir.
Caminhou lentamente e chegou à sua casa quando já era escuro e a chuva já era apenas uma sutil e fina garoa. Tomou um banho, fez um macarrão instantâneo, o comeu acompanhado de um dose de vinho barato e, ao som da televisão, foi dormir.
Na manhã seguinte, levantou-se antes mesmo do despertador. Se arrumou, tomou um café forte e foi pro trabalho. Pediu demissão. Não tinha planos, sequer deu maiores explicações. Largou o escritório. Simples assim.

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