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De valentes e covardes

Havia esse garoto. Renan. Fazia pinta de bad boy, batia nos menores, falava só em gírias e não sabia apenas “falar”, tinha de gritar. Era um pequeno diabo. Porém, foi só questão de tempo até chegar a adolescência para toda a molecada, que ele viu sua importância diminuir, junto ao respeito e medo que tinham por ele. Não se fazia muita coisa além de brincadeiras de esconder-se, “polícia e ladrão” (desde pequenos, garotos são estimulados a aprender a malandragem ou a força da autoridade), corridas de bicicletas, empinar pipas, jogar futebol e ver as garotas das outras ruas que passavam em seus biquínis curtos e deixavam os pivetes boquiabertos.

Assim, alguma coisa nos fez perceber, a todos nós, que havia algo de estranho e “não respeitável” em nosso, até então, coleguinha. O puto tinha alguma disfunção. Estávamos lá, conversando, rindo, falando bobagens, sobre as bundas das garotas, contando piadas que líamos em revistas velhas de nossos avôs ou tios e, de repente, um cheiro desgraçado dava o ar da graça. Ou melhor, totalmente o contrário disso! Era algo de fazer passar mal de verdade, tamanha intensidade daquilo. Até que, após observarmos atentamente, percebemos que o fedor vinha dele. Renan. Era só ele cair fora, dizendo que ia almoçar ou tomar banho, o cheiro ia embora. Antes de ele chegar, estava tudo em paz. Ele chegava, lá estava a desgraça. Simples. Um bueiro em forma de gente. Soubemos que ele tinha tal “incontinência retal”. Porra! Que inferno! Ele não tinha culpa dessa desgraça, porém, tampouco nós a tínhamos. No meio da conversa, subia às narinas de quem quer que fosse o resultado da maldição que o afligia.

Respeito? Não, não fazíamos ideia de o que era isso. Não em se tratando de respeitar aquele mesmo infeliz que, até então, subjugava todo mundo. Se ele não sabia como controlar seu cu, ninguém sabia mais controlar as pernas. Era um massacre. Assim que descobríamos ou, ao menos, suspeitávamos vir dele qualquer cheiro desagradável de merda, o cobríamos de pontapés. Tanto faz onde acertávamos. A ordem da vez era humilhar. A ideia era, mesmo, maltratar. Causar dor, vergonha, medo e autoflagelo. Víamos em seu olhar a ausência de qualquer orgulho próprio. – Renan, caralho! Seu bosta! Cagão, filho da puta! Cu frouxo do inferno... – era o que mais se ouvia mais enquanto ele estava por perto.

Eu mesmo, que até então me julgava evoluído espiritualmente; que lia o Evangelho; que fazia orações todas as noites antes de dormir; que acreditava em reencarnação, em Deus e no bem; eu mesmo não hesitava. Chutes bem dados e ofensas de todo o tipo, sempre que sobrava uma brecha. E, ai dele, se ousasse me dirigir a palavra, sem que eu o autorizasse. Mais chutes, tapas na cabeça, humilhações de todo tipo e, às vezes, por apenas um olhar em minha direção. No embalo da molecada, encontrei meu bode expiatório e, nele, descontava toda minha ira, minhas frustrações, minha própria incompreensão, minhas fraquezas, minha covardia. Não havia nascido daquele jeito, sequer fui instruído a fazer aquilo. Mas eu gostava, ou pensava que gostava. Encontrei um modo pra “brincar de justiceiro”, sobrepondo minha força e poder de terror em Renan, um pobre que escolheu o lugar errado pra bater nas crianças menores e a hora errada pra defecar na frente de seus “iguais”.

No fim das contas, eu não era muito diferente dele. Com exceção à merda toda que ele fazia diariamente nas próprias calças, éramos dois imbecis e covardes. Ele, por subjugar os quais ele sabia que não reagiriam e por não ter tido, nunca, qualquer reação à minha violência. Eu, por acreditar, ou me convencer de, que eu tinha qualquer permissão e liberdade pra espancá-lo, humilhá-lo e diminui-lo perante todos. Protegi-me na ilusão de ser o defensor dos mais fracos e utilizei da mesma lógica rasa, terrorista e maldita que ele mesmo impunha a suas vítimas. Talvez, eu fosse mesmo pior. Talvez, quem realmente merecesse tantos pontapés, na verdade, fosse eu.

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