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Bourbon

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Já finalizava a quinta dose e, a banda ainda sequer começara a tocar. Em sua própria companhia, escorado no balcão, a única voz que ouvia com clareza era a do barman. Fechou os olhos, a banda começou a tocar. Uma cadência leve, bossa-novista, uma voz feminina sussurrante tomava conta do microfone. Então, levantou a cabeça e alguns metros adiante pôde ver uma linda mulher, de uma beleza estonteante. O ambiente estava tomado por uma estranha neblina, mas a via ao fundo. Ela o olhava, com um olhar encantador. Tinha lábios delicados e rosados, olhos negros como a noite e a pele alva em contraste. Longos cabelos que caíam recobrindo o colo. As mãos, pequenas e leves, pousadas sobre a coxa, as pernas cruzadas lhe completavam o ar da graça. Mas era no olhar em que ele se perdia. Ela parecia apenas tentar dominar sua mente, seus instintos, como se não intencionasse nada além de tirar-lhe de órbita. Seu olhar o confundia e, simultaneamente, o contrabaixo deslizava notas que o submergiam diante de tanta beleza.
Então, ele resolveu levantar-se. Precisava chegar até aquela mulher. Mas não conseguiu. Suas pernas não respondiam. Seu corpo não se movia. Sentia um repentino latejar no olho esquerdo e seu corpo suava. Suava muito. A música aumentou, acelerou e o trompete ditava a melodia agora. No frenético ritmo da bateria seu olho latejava, descontroladamente. Sentiu-se tonto e não tinha forças para ficar em pé. Ela continuava com seu olhar firme. Sua pele havia enrubescido, mas mantinha sua postura intacta, com as pernas ainda cruzadas e as mãos sobre as coxas. Ele se perguntava o que deveria e poderia fazer. Talvez tivesse exagerado nas doses um tanto cedo demais, e por isso estava inerte. Fato é que não fazia mais diferença o que o deixara assim.
Ela, enfim, levantou-se e caminhou na direção dele. Lentamente. Uma nova música começava e, agora, a vocalista voltava ao comando. Cantava sutilmente, em ritmo lento. Cada palavra compunha toda uma frase rítmica. Que voz, que encanto. Uma voz tão macia e aveludada. Cada nota da música impulsionava um passo a mais daquele anjo em sua direção. Tinha um charme único ao caminhar. E o fitava nos olhos enquanto se aproximava. Já não era mais dono de seu próprio corpo, quiçá de sua mente. Estava entregue. Entorpecido. Hipnotizado, por ela. Seria mesmo um anjo? Então, quando ela chegou até ele, segurou-lhe delicadamente o punho e, em seu ouvido, lhe sussurrou: "O amor é um álcool, o amor é um vício". A mesma voz da cantora.
Ele abriu os olhos e em sua mão ainda segurava seu copo. Ainda sentia a mão dela em volta de seu punho. A fumaça se havia esvaecido. Olhou para todos os lados, ela havia desaparecido tal qual a fumaça. Os músicos guardavam seus instrumentos, o barman já não servia mais ninguém, o caixa já atendia aos últimos clientes que estavam a pagar. Sentiu-se perdido. Perdeu a noite? Perdeu sua única chance? Pagou a conta e foi embora.
Na noite seguinte, voltou ao mesmo bar. À procura de seu vício, seu nobre vício. Seu vício que o visitava em todas as noites de jazz e o seu Bourbon: ela. Algumas doses, ela estava lá.

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