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O cotidiano das pequenas tragédias

 


 

Ardia, ardia, ardia. Pensei: “Merda! Então é assim que vai ser? Burro, burro maldito”...

 

 


Parte I

A imagem de um derrotado



Não eram sequer 7h, a senhoria me batia à porta. “Diabos”, pensei e ignorei. Mais 3 fortes batidas e tive de atendê-la.
- Bom dia, senhora. A que lhe devo... – ela me interrompeu.
- Me deve há 3 meses, completos ontem, e de acordo com o contrato, lhe trouxe a ordem de despejo. O senhor tem 3 dias para tirar suas coisas daqui e partir – virou-me as costas e desceu as escadas.
Essa seria a terceira vez que me tocavam pra fora em um único ano. Três meses, três dias, terceira vez. Qual era minha escolha? Desde que o meu maldito patrão, digo, último patrão me botou na rua, não encontrei um trabalho sequer. Ora sou velho demais para a função, com meus 44 anos, ora sou pouco qualificado: o que quer dizer, entre outras palavras, “obsoleto”.
Peguei os últimos exemplares dos classificados, nada novo em vista. Já fiz até a mesma entrevista pra uma mesma vaga. Tentei ludibriar os filhos da puta com um currículo mais atualizado (com cursos que, obviamente, nunca fiz), mas não adiantou. Os desgraçados nos pegam em testes práticos. Fiz datilografia há muitos anos e foi só. No meu último emprego, mexia com computadores, mas era só digitando textos. Mal sabia fazer qualquer outra coisa. Aliás, odiava ter de imprimir a cada vez que terminava pra poder checar a digitação. Na máquina, você simplesmente bate as teclas e, “voilá”, está tudo pronto à sua frente. O que escreveu, já está impresso. Oras.
O seguro desemprego, uma merreca, só me garantia 2 maços de cigarro a quinzena (um racionamento maldito de cigarros), um café da manhã com pão e margarina, e um almoço simples (todo dia, quase a mesma coisa). Sentado em minha cama, pensava e não chegava a conclusão alguma. Exceto a óbvia e evidente: de que estava fodido. Amigos? Há! Os últimos pelos quais chamei “amigos” foram os primeiros a sair de cena quando fui pra sarjeta. Hoje, não passam de colegas de merda. Putos sanguessugas que se escoravam em mim e agora estão lá, cães sarnentos lambendo as feridas do patrão desesperado por ampliar os lucros daquela porcaria.
Já havia 2 meses, eu não sabia o que era passar uma noite à companhia de uma mulher. Levantei e fui ao banheiro. Foi lá que entendi o porquê deste isolamento, mais que uma quarentena: meus cabelos grisalhos e desgrenhados, a barba cerrada, olheiras mórbidas, e uma porra dum banheiro imundo, sem iluminação. Era o retrato de minha derrota. Quem haveria de me desejar? Se mamãe estivesse viva, seria a primeira a me alertar, com todo seu carinho: “filho, você está horrível”.
Bateram à porta, de um modo diferente ao da senhoria.

 


Parte II

A proposta irrecusável

Ao abrir, me deparei com um homem assustador. Seus olhos saltados, a pele alva e os cabelos curtos e pretos me remetiam a filmes sobre a Segunda Guerra.
- Pois, não? – lhe perguntei
- Pierre, é você?
Fiquei um tanto mais assustado, mas confirmei. O homem entrou à minha casa (ao menos, minha pelos próximos três dias). Examinou o local, pensei que fosse o novo e futuro inquilino. Ele não gostaria do que estava a ver.
- Perfeito. Era você mesmo quem eu esperava encontrar. E diante desta merda toda que vejo por aqui, não espero muita resistência e hesitação.
Sem entender nada, acendi um cigarro e apenas esperei.
- Tenho uma proposta. Você tem um dia, exatas 24h pra se decidir se a aceitará, e, caso contrário, mais apenas 1h pra dar o fora da cidade – Eu começava a me habituar a essa história de ser chutado de onde quer que eu estivesse. Casa, trabalho, cidade.
O grandalhão começou a falar e falava com as mãos, porém com bastante frieza. Ele sabia que eu devia o aluguel, que estava desempregado e de saco-cheio. Eu não sou do tipo mal encarado, mas talvez fosse este o meu atrativo. Quando se é indiferente a tudo, ética parece apenas uma palavra desconhecida aos olhos dos outros. Não era, também, uma completa inverdade.
- Escute bem, não abra a boca e pense bem a respeito. Haverá uma transação no banco central na próxima quinta-feira, mas a pessoa em quem confiávamos sofreu um acidente – logo comecei a imaginar o acidente sofrido... Uma escada, uma janela ou uma bala na hora e lugar errados. Algo assim. Tudo já estava claro, mas em que eu lhe poderia ajudar, não faço a mínima!
Comecei a me distrair enquanto o sujeito tagarelava. Céus... Como falava, diga-se! Pra ser sincero, eu preferiria saber menos. Mas continuei ali, olhando pro sujeito e divagando.
- Está ouvindo, seu puto?! – me gritou o sujeito. Acenei com a mão positivamente e perguntei.
- Afinal, onde eu entro nesta história?
- É você quem pegará o dinheiro.
Muito bom, pensei. Aluguel atrasado, desempregado e, agora, assaltante. Era exatamente isso o que eu precisava.
- Até quando posso responder? – perguntei, como se eu fosse pensar na hipótese. Já estava mesmo é preocupado em saber pra que raios de cidade eu iria tentar a vida. Que vida, aliás?
- 8h da manhã. Nem mais tarde, nem mais cedo. Voltarei aqui e quero uma resposta definitiva. Se estiver aqui, já sabe, entenderei que está dentro.
Já que não fomos apresentados, decidi. Estevam – era assim que eu resolvi que seria seu nome. Estevam virou-se e saiu.
Puta merda, agora era um ultimato: participar desta merda ou mudar de cidade de um dia pro outro. Aí é que está a sorte em não se ter família, pensei. Saí buscar mais um maço de cigarro. O dia seria longo, e sem entrevistas, além desta.
No caminho para a mercearia, notei que a senhoria me olhava com um olhar de reprovação. Sempre me olhava assim, aliás. Mas desta vez, seria pelo aluguel? Ou suspeitava de algo? Afinal, nada lhe passava às vistas. De certo, viu aquele tipo em minha porta. Bah! Pro inferno com isso! A megera vivia às custas de aluguel de apartamentos minúsculos que herdou e nunca precisou suar para comprar um sequer, e agora quer me julgar com seu olhar de abutre? Em meus 44 anos, trabalhei dez vezes mais que esta velha.
Na mercearia, peguei algumas latas de cerveja e um box de Hollywood, um jornal dos classificados e três pães (deveriam ser suficientes até amanhã). Voltei pra casa, ainda sem café, tomei um copo d’água da torneira e apanhei o jornal. A cabeça a mil não me desligava da imagem de Estevam. Seus olhos pareciam engolir minha alma, dilaceravam minha mente, e suas mãos, enormes e inquietas, me roubavam qualquer senso de honestidade e ética que ainda me sobrava.
Passei aquela tarde inteira fumando, bebendo e pensando nisso, e nos classificados, nenhum trabalho pro meu “perfil” era sequer citado. A essa altura, já estava misturando água na cerveja pra render. Argh! O problema era a água estar sem gelo.
Parei à janela, admirando as poucas jovens que ali passavam em seus microvestidos, a caminho da faculdade. Inclusive, me parece que hoje se entra na faculdade mais jovem, pois só vejo garotas com rostinhos de 16, corpos de 20 e ousadia de 30. Faculdade, coisa que não tenho. Como já falei, fiz datilografia e parei por aí. Não tinha tempo de pensar em droga nenhuma que não fosse trabalho. Como ia pensar em faculdade? Pra quê? Pra ser chutado como um cachorro velho no fim das contas. Merda!
Já eram 7h45 da noite e eu não tinha nem almoçado, não ia ter janta e sequer tinha tomado banho. Mais uma razão de eu estar sozinho, pensei. Deitei-me ao sofá, pensei em tomar banho após relaxar um pouco. Caí no sono. Na verdade, hibernei.

 

 

 


Parte III

Novos amigos

Acordei apenas na quarta, às 8h, com fortes batidas na porta. Pelo olho-mágico, o reconheci. Meu “amigo”, Estevam. Oh, merda! O que aconteceu pra eu apagar desse jeito?
Abri a porta.
- Ah, você ainda está aí. Então, está conosco!
“Apenas acabo de acordar”, foi o que pensei. Tarde demais, tarde demais pra refutar.
Estevam, tocando meu peito, me lançou pra trás num movimento rápido e natural, sem esforço algum, abrindo caminho pra entrar com mais dois figuras que surgiram detrás da parede. Um careca magricela com nariz fino e comprido, de orelhas de abano, feio como um rato, e um gordo de bigodes e suspensórios, suando feito um porco. O primeiro carregava um chaveiro com um canivete pendurado, e ficava abrindo-o e o girando por entre os dedos. Logo pensei que o tipinho andava vendo muitos filmes ultimamente. Já o gordo, por sua vez, tinha um olhar assustado e reparei que portava uma semiautomática presa à calça, sem fazer muita questão de escondê-la. Não sei se por burrice ou se era só pra me intimidar mesmo. Foi então que ficou claro que a essa altura eu deveria estar a quilômetros, caso não pretendesse participar daquilo.
Estevam fechou a porta com o calcanhar e, após o estrondo da batida, o magricela começou:
- Tem família, esposa, filhos?
- Não. – respondi.
- Namorada?
- Não.
- Namorado? – disse Estevam, aos risos.
- Não tenho ninguém. – respondi sério.
- Ótimo! Assim é melhor. Alguma inimizade? – perguntou o magricela.
- Até onde sei, não. – A coisa parecia ser mesmo muito séria, e o magricela parecia ser o cabeça.
- Perfeito. E, após o dia de amanhã, o que pretende fazer? Sabe quanto vamos embolsar?
- Na verdade, ele não me detalhou nada. Mas não tenho grandes planos, pra ser sincero. – Pensei comigo, “quanto menos, melhor. Quanto menos ambições, quanto menos vínculos e quanto menos eles souberem de mim, mais estarei livre de futuros incômodos”.
Diferentemente de Estevam, cheio de ironias e ameaças, o sujeito falava com calma, perfeita dicção e ia direto ao ponto, sem devaneios. O esquema era o seguinte: envolvido em algum trambique, um rolo pesado, visitaria o banco um vereador local, em uma van qualquer. O tal representante do povo chegaria por volta das 9h da manhã, antes mesmo da abertura do banco para o público, e então entraria à companhia de um gerente, que lhe passaria fundos para sua campanha. Mas estes fundos são muito mais fundos que jamais vi antes disso.
- Deus! E como é que vocês sabem disso tudo? – indaguei.
- O Getúlio. Ele é o motorista particular do nosso “colarinho-branco” e é ele quem estará guiando a van – me respondeu o magricela, com o indicador em riste na direção do gordão.
Getúlio, nosso informante. Ou, “o Gordo” levaria nosso amigo vereador ao banco, como se de nada mais soubesse. Em um Escort ’89, cor cinza, iríamos Estevam, o magricela e eu. O magricela, enfim, se apresentou.
- Já que agora sabemos quem é quem, me chame de Vicente.
E prosseguiu com o plano. Após deixar o corrupto nas proximidades, o Gordo largaria a van em uma das ruas do entorno, e seria nosso “piloto de fuga”. Nós três (Vicente, Estevam e eu) chegaríamos um pouco antes. Vicente não é um tipo intimidador, mas é figura conhecida do vereador, assim, não seria ele a participar da ação no banco. Vicente ficaria de vigia na porta do banco assim que o vereador entrasse. Estevam (que continuava sem apresentações) chamaria atenção demais na rua. Se a ideia é ser discreto, ele não seria bem o tipo ideal pra vigiar. Mas já que ele era grande, isso deveria lhe dar alguma utilidade. De tal modo, Estevam parecia que se divertiria com sua missão, pois começou a rir quando Vicente disse que ele teria de “entreter” o segurança, enquanto eu entraria no banco, abordando o gerente, como se fosse parte do grupo do vereador.
Enquanto ouvia o plano, não pude deixar de reparar o Gordo. O sujeito não parava de balançar os pés, não parava de suar (antes sei que suava por conta das escadas que subiu pra chegar ao meu cubículo, agora, me parecia que não era só isso). Olhava para os lados, ia até a janela a cada 15 segundos ou menos, andava de um lado para o outro. Quando parava, era para pentear os bigodes com a ponta dos dedos. Havia algo errado e ele não nos contaria.
Por fim, Vicente me cumprimentou, com forte aperto de mão e olhar firme e incisivo. Estevam ironizou minha morada mais uma vez, como na manhã anterior, me deu a mão, um bruto tapa nas costas, riu e saiu. Getúlio Gordo, como entrou, saiu: quieto, estranho, aparentando ansiedade e sem me olhar nos olhos. Algo ia me incomodar. Simples assim, não fui com a cara deste puto!
Fui à cozinha, revirei a geladeira, o armário, as gavetas. Não tinha nada. Sobre o fogão, um bule com café de dois dias; velho, frio e amargo. Mais amargo que a vida. Foda-se! Era tudo que eu tinha, por hora. Acendi um cigarro e fui pensar... no banheiro.
Não conseguia deixar de pensar naquele gordo nojento. Cheirava à merda, só podia dar merda. Fugiria com toda a grana, nos entregaria à polícia, bateria a droga do carro, não sei. Mas ia foder a porra toda, disso eu tinha certeza. Parecia mais amador que eu!
Parecia.
Já não tinha mais o que fazer. Estava tudo definido. Os detalhes ficariam pra amanhã. Eram 6h30 e começou a escurecer de repente, logo eu já não enxergava nada em casa. Passei o dia pensando em que faria com a grana que ao dia seguinte a essa hora estaria em minhas mãos. Me vi voando pra alguma cidade do nordeste do país, em busca de praia e vida mansa, regada a água de coco, sombra e mulheres... Que idiota! Talvez fosse melhor continuar por aqui mesmo, como disse que faria. Evitaria transtornos. Não gastaria tudo em meses e não levantaria tanta poeira pra suspeitarem. Isto é, como se alguém fosse dar conta de minha partida, além da velha, dona desta pocilga.


Parte IV

Sem porre e algumas porradas

Era quarta à noite e eu já não aguentava mais ficar dentro de casa, dia após dia. Precisava fazer algo. Peguei alguns trocados na gaveta da sala, enfiei-os no bolso da calça e, após um banho gelado, saí em busca de algum boteco qualquer que fosse mais limpo que minha sala e cozinha. Não seria muito difícil. Entrei logo no primeiro. Havia alguns homens já mais loucos que eu me recordava ter ficado alguma vez.
Um deles, um garoto de uns vinte e cinco anos, acreditava ter as respostas pra todos os males e mazelas da vida humana. Não sei bem precisar o que lhe transferia tanta certeza e confiança em si, se era o fato de haver outros que lhe olhavam com admiração ou se era seu visual engomadinho. Falava como um advogado ou algo do tipo, gestos expressivos e firmes que me fizeram pensar em Mussolini. Ultimamente, eu assistia muitos documentários sobre as grandes guerras. Estava aficionado. Talvez fosse melhor parar com isso um pouco.
Enfim, o garoto tinha gestos energéticos, posicionado no balcão de modo a estar sempre olhando de cima aos seus interlocutores. Ou, melhor dizendo, seus ouvintes e boçais expectadores. Estavam em cinco. O engomadinho, dois outros garotos que apenas concordavam com ele erguendo suas cervejas e mais duas garotas. Uma delas assistia a tudo com um olhar cansado, enjoado, e estava inerte, anestesiada. Parecia imune a todo falatório. Foi quando me dei por certo: ela era sua namorada, certeza. Entediada e antipática à presunção de seu companheiro, que mais queria holofotes e um palco, ela preferia ficar ao canto, talvez pensando que estava desperdiçando tempo com aquele garoto.
Atrás deles, um velho. Em seus 70 anos, resmungava consigo mesmo. Mal dava pra decifrar o que dizia, mas resmungava sem parar, e olhava de rabo-de-olho em direção ao engomadinho.
- Vejam! – exclamou o garoto. – Somos filhos e netos de gerações perdidas, fracassadas. E eis aqui, bem aqui atrás, a síntese desta geração.
Dizia e repetia isso a cada fim de uma de suas ideias e apontava para o velho homem.
- Fê, pare com isso! – lhe pediu a garota entediada.
- Oras! O quê? Estou apenas explicando meu ponto de vista. – justificou-se, como se houvesse o que explicar, já que todos o olhavam com admiração, exceto ela. Como se, além de tudo, o ponto de vista dele fosse realmente importante, relevante e interessante.
- Acho que você já explicou o suficiente. Vamos pra casa, estou cansada. Aliás, amanhã eu trabalho e você tem uma entrevista, não? – ela retrucou.
O puto sabichão não trabalhava e se julgava o vencedor. O que ela fazia com um merdinha destes? No que o velho, então, disse em voz alta e clara o que eu já estava pensando:
- Isso, vá embora.
O rapaz desencostou do balcão e foi até o velho. Tocou-lhe os ombros e perguntou:
- Como é, velho?
- Você ouviu bem. É jovem, tem bom ouvido e parece entender bem tudo que ouve. Não é mesmo?
Suei frio e percebi que a merda estava armada. O velho, ofendido a noite toda, resolveu erguer a cabeça e encarar o merdinha. Mas por mais digno que isso pudesse ser, não era a decisão mais inteligente. O rapaz estava com seus amigos, e sabe-se bem como são os jovens frente a garotas: eles acreditam que sua masculinidade depende de aprovação o tempo todo e não sabem o que fazer pra impressionar uma mulher.
Foi então que o garoto empurrou o velho. Algumas pessoas, de longe, olharam. Nada fizeram. O velho deu uma risada. Os “capangas” do merdinha se levantaram e se puseram atrás dele, encarando o velho. Foi quando a menina gritou: “Pare!”, que o garoto resolveu dar liberdade a seus hormônios e deu um soco na barriga do velho. Pobre velho. Todos no bar já assistiam à cena, ninguém movia um palito de dentes. O velho se recompôs do primeiro soco. Levantou a cabeça e antes que pudesse reagir, levou outro, desta vez, no rosto. Que porrada! Caiu no chão, imediatamente. O balconista foi para os fundos do bar, pensei que era para ligar para a polícia. Ledo engano. Não voltou mais. Não me aguentei. Alguém precisava fazer alguma coisa. Peguei a garrafa de cerveja que estava tomando, despejei tudo no copo, dei alguns goles, segurei a garrafa e fui até lá. Os garotos estavam de costas pra mim. Empunhei-a pelo gargalo e, sem hesitar, arrebentei-a na cabeça daquele merdinha. Ele caiu e já colocou a mão na cabeça. Sangrava. Pensei ter salvado o velho, mas esqueci de mim. Foi então que um dos outros me acertou as costas. Um soco nas costelas, perto do baço. Daí em diante, foram porradas e pontapés vindas de todos os lados. Os dois só pararam de me bater quando perceberam que o amigo levantara-se zonzo e com a mão cheia de sangue. Correram para fora do bar para socorrê-lo. A namorada do jovem foi a última a sair de lá. Olhou para mim, caído no chão todo dolorido, e disse algo. Creio que me pediu desculpas. Chorava. Acho que o merdinha ficou na corda bamba com a namorada naquela noite. Acho que ela não teve mais de aturar suas histórias e devaneios patéticos. O velho, pobre velho, me agradeceu. Senti que tinha feito algo útil em meu dia, mas estava arrebentado. Minha cerveja estava quente no balcão. Quem ainda estava no bar, fez de conta que não viu nada e continuou com sua noite normalmente. Não sei como cheguei a minha casa, mas sei que quando me dei conta, estava deitado em minha cama, com a boca cortada e cheio de dores no corpo.

 

 


Parte V

Erro de cálculo

- Levante, Pierre! Seu maldito! Ou não vamos chegar a tempo, cacete! – Foi assim que recebi meu primeiro bom dia naquela quinta-feira. Era Estevam, batendo à porta com toda força. O som era tão brutal e estrondoso que invadiu meus sonhos e tive a impressão de estar em um prédio a demolir, amarrado ao chão, apenas esperando a morte chegar. Era só um sonho mesmo. Talvez fosse melhor se fosse real.
Pus-me de pé e fui abrir a porta. Estevam era um sujeito efusivo, mas de tão torto, mal-acabado, tosco, feio demais, sua reação a me ver me fez até começar a simpatizar com ele. Não agia como um ogro por maldade, e sequer era zombador por julgar-se melhor que alguém, mas por alguma infantilidade exagerada. É bem verdade que tinha seus momentos de sanidade e sensatez, como quando nos conhecemos, mas me pareceu que quanto mais próximo ficava o grande momento do golpe, mais ele se soltava e queria aproximar-se de mim. Talvez fosse melhor assim, eu me sentia melhor assim.
Lavei o rosto, engoli um resto de café que estava frio, aquele de três dias na garrafa, joguei uma água na boca, fui até o banheiro e foi sangue o que saiu de mim. Ardia pra diabo! Mas eu não tinha tempo pra preocupar-me com isso. Estevam estava zanzando pelos cômodos, ansioso, rindo e estalando as juntas. Mais um amador, certeza. Coloquei minha melhor camisa, amassada, meu melhor terno, velho, e meu melhor par de sapatos, velhos também. E lá fomos nós!
Descemos as escadas e fomos ao encontro de Vicente, que nos aguardava frente ao velho Escort, de braços cruzados, fumando um cigarro amassado, vestido em um paletó marrom, de sapatos marrons, camisa branca e um inexplicável chapéu bege. Era uma mistura de estilos que lhe conferiam um ar tremendamente estereotipado e caricato. Bem, isso eu não iria questionar, evidentemente. O cumprimentei, ele me ofereceu um cigarro. Minhas mãos tremiam, as dele não. Talvez um cigarro fosse bom pra me acalmar. Meu maço estava em casa, o esqueci, portanto, aceitei a oferta. Ele fumava Dunhill, tive a curiosidade de ler no cigarro. Dunhill não é dos mais baratos. Aí está, achei que talvez me acalmasse mais facilmente. Entrei no carro, e fui direto para o banco de trás. Não estávamos em um quatro portas, logo, os vidros traseiros abriam apenas uma fresta na parte de trás e, assim, defumei o ambiente.
Na presença de Vicente, Estevam ficava mais calado. Sabia quem mandava ali. Vicente ordenou:
- Samuel, abra o porta-luvas e faça a distribuição. – Enfim, eu sabia o nome real, ou ao menos o codinome, do meu amigo Estevam. Samuel. Mas que distribuição?
Estevam – ou Samuel, tanto faz, como tanto fez – me estendeu uma pistola automática. Porra, e eu que pensei que não precisaria disso. Ele ficou com outra arma, virou-se pra mim e me explicou como usar aquela joça, como travar e como destravar – isso era realmente importante. Travei a dita cuja e a prendi na cintura, às costas. Chegávamos, enfim, ao quarteirão do banco. Minhas mãos suavam frias, eu sentia todas as costelas, cada uma golpeada por aqueles imbecis da noite anterior. De repente, meu nariz começou a escorrer. Sangue. Vicente olhou-me pelo espelho retrovisor e me alertou. Cacete! Era o que me faltava.
- Que diabos aconteceu com você? – perguntou.
- Como? – falei.
- Você está sangrando, seu olho está inchado e sua cara não está nada boa.
- Pois é, uma merda. Meti-me numa confusão ontem à noite. Hora e lugar errados. – justifiquei.
- Pois é, vejo. Bem, que isso não intimide ou assuste ninguém. É bom que não! – ameaçou Vicente.
Eram 8h47, exatamente, de acordo com Vicente. Estevam estalou mais algumas juntas – eu pensava que não havia mais o que ele estalar –, guardou sua arma na cintura e disse que era hora. Ambos abriram as portas e desceram, desci também. Vicente me chamou pra perto:
- Escute bem, agora. Vamos até à porta do banco, chamarei o segurança e pedirei que chame o gerente. O segurança está sabendo da transação com o vereador, não tem erro. Quando o gerente chegar, apresente-se como Sr. Costa, assessor do vereador. Não é figura carimbada, mas está no esquema. Assim você passa mais fácil.
- Costa. Certo. E ele, o... o... Samuel – hesitei, já ia chama-lo por Vicente – vai entrar comigo?
- Sim, vocês entrarão juntos. Ficarei à porta, como já conversamos, para observar o movimento. Então, enquanto você entra com o gerente e aguarda a chegada do vereador, Samuel vai buscando a confiança do segurança.
- Perfeito.
Fomos à porta do banco e tudo, como planejado, deu certo. Ao menos, parecia ter dado certo. Houve um erro de cálculo.
- Senhor Fonseca, chegou seu assessor. – anunciou o segurança, um senhor em seus 50 anos.
Puta merda! O vereador, eu sabia quem era! Ele me conhecia. Era o ex-marido da velha, a dona da espelunca na qual eu morava. Ele vivia indo ao prédio, pois ainda era dono de parte dos apartamentos. E estava metido numa sujeira das grandes. E agora, ambos estávamos numa sinuca de bico. Ele havia chegado antes do horário previsto, e já conversava com o gerente. Todos nos olhamos sem saber que fazer. Um impasse. O segurança percebeu a situação. Algo estava muito errado. Levou sua mão direita à cintura, onde estava sua arma – pude ouvir o estalo da arma destravando.
Fonseca era a expressão mais bela do desespero. Estevam calmamente caminhou até o segurança, como se fossem velhos amigos. O segurança não movia um músculo. Parecia hipnotizado por aquela figura desengonçada e grande que é Estevam. O sujeito metia medo em qualquer um, armado ou não. E não precisou sequer falar algo ao segurança. Sacou sutilmente sua arma da cintura com tamanha elegância, que eu jamais imaginava que poderia ter, e a apontou para o segurança, que começou a chorar instantaneamente. A cena era impressionante, apoteótica e ao mesmo tempo patética. Meu amigo era um mestre e eu pensando que estava nervoso. Empunhei minha arma também e já a destravei, apontando para Fonseca. Ele segurava uma maleta marrom, tal qual era o terno de Vicente. Foi quando olhei pra trás e vi atrás do vidro da porta, observando o lado de dentro, Getúlio Gordo. Senti calafrios. Foi como ver espírito. Era este o puto que defecaria a zona toda. Comecei a tremer e suar. Então, vi que ele saiu de lá, e apenas Vicente aparecia caminhando de um lado pro outro. Suponho que Gordo foi buscar o carro da fuga. Suponho, pois não deu tempo de saber pra onde foi.
Eu só tinha olhos pra Fonseca, agarrado à maleta como se fosse um bebê recém-nascido nos braços da mãe desesperada em salvá-lo. De repente, ouvi um disparo. Um som seco, abafado. Um estalido rápido, intenso e assustador. De nervosismo, apertei meu gatilho. Instantaneamente Fonseca caiu largando a maleta. Eu? Bem, demorei a perceber. Tinha atingido o sujeito. Mas demorei mais ainda a perceber o pior. O gerente empunhava uma arma também e, assim que Fonseca caiu, disparou.
Ardia, ardia, ardia. Pensei: “Merda! Então é assim que vai ser? Burro, burro maldito”... Senti minhas pernas enfraquecerem e caí no chão de joelhos, e depois enfiei a cara no tapete. Comecei a ouvir tudo mais abafado. Por que raios eu tinha de destravar a merda da pistola? Por que, raios, eu botei o dedo no gatilho e apertei? Um perfeito imbecil. Ouvi alguém entrar no banco. Era Vicente. Ele falava com o gerente. O cumprimentava. Ouvi dizer que colocaria a arma na mão de Fonseca, apagado no chão. Estava tudo nos planos. O gerente aproveitar-se-ia da transação com Fonseca pra desviar o dinheiro para si mesmo, mas mais do que o trato com o vereador, através de Vicente. Vicente, o Gordo e Estevam já tinham pensado em tudo. Escolheram o cara certo. Alguém sem ter o que perder, sem parentes, amigos, amores. Um fodido. O gerente ficaria por lá, como testemunha, o segurança embolsaria alguma quantia pra ficar quieto enquanto as coisas não esfriassem, o trio sairia de cena como se nunca tivesse aparecido, Fonseca seria o acusado por tentar extorquir ao gerente e eu seria visto como seu capanga desempregado e desesperado pela grana que, por isso, teria se desentendido com ele e, assim, teríamos nos baleado. Ao menos, enquanto o segurança não abrisse a boca, seria tempo suficiente pra que todos os envolvidos dessem o fora da cidade sem deixar rastros.
Meu peito ardia, eu sentia o calor do meu sangue saindo pelo buraco da bala. Direto no meio do peito. Deve ter perfurado um pulmão. Eu não sei como é sentir o pulmão. Só sei que sentia falta de ar e meu corpo começava a ficar frio. Muito frio. De fato, nada especial. Era o fim. O meu fim. Nada especial. Algo bem cotidiano, aliás. Mais um político corrupto, mais um desempregado desesperado, dinheiro sujo, alguma traição, ambos mortos, ninguém sentiria falta. Bem cotidiano. E o cotidiano não é uma tragédia grega. Meu velório estaria vazio, o dele, cheio. Cheio de outros sujeitos como ele. Com as mãos sujas e a cara limpa. Mas eu seria esquecido num par de dias. Ele seria manchete de jornais durante alguns bons dias.



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