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Cigarros ao espelho

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No meu terceiro cigarro, ela me perguntou: "e por que diabos você não vai atrás disso?". Fiquei sem reação, como quando a gente leva um tapa na cara inesperado e tem de concordar que foi merecido. Nós dois ali, sentados na cama: ela na beirada do pé da cama, eu encostado na cabeceira. Fiquei tão perplexo que mal pude reparar que o cigarro consumiu-se sozinho e a ponta de cinzas, já enorme, caía por sobre o lençol enquanto eu ficava olhando pro espelho do teto.

Eu aparentava uns 15 anos a mais de minha idade. Com entradas monstruosas de calvície, olheiras profundas, rosto cansado, pele pálida, corpo peludo, barba por fazer e barrigudo - um lixo. Eu não lembrava sequer a última vez que parei frente ao espelho pra arrumar o cabelo ou passar um fio-dental. Já ela, sentada à beira da cama, no auge de sua juventude, mexia na ponta de seus pequenos dedos dos pés. A bela e a fera: éramos nós refletidos no espelho de teto.

O que a teria feito interessar-se por mim? Parecia-me um absurdo tal anjo dividindo a mesma cama que eu. Nua, com seus seios firmes e pequenos, a boca delicada ainda que de lábios grossos e carnudos, totalmente convidativa. Eu e minha ostentação de decadência, o que tinha a oferecer, além de poemas, palavras bonitas retiradas das obras de outros escritores que não eu mesmo, filosofias mal lidas e uma voz rouca (a qual ela dizia ser sexy) que eu adquiri por conta de mais de 30 anos fumando ao menos um maço por dia? Oras! Como escritor eu não era mais do que um acumulador de frases de efeito e papel velho e amassado jogado em meu quarto. Vivia de quebra-galhos, não empregos, para velhos colegas, que me pediam para revisar seus textos e trabalhos vez ou outra. Até que tirava um bom dinheiro em cada página revisada, mas era dinheiro com o qual eu não podia contar.

- É, neném. Nem todas as escolhas que faço, faço porque realmente escolho. Faço, pois não vejo alternativa.

- Isso é desculpa - me retrucou ela.

- Não é desculpa, é explicação.

- De modo algum. Você é quem não tem coragem. Só sabe reclamar e transar. Se tivesse coragem, mudava isso tudo e então, tenho certeza, não iria reclamar, só transaria mesmo. O que seria bem melhor. Muito melhor mesmo.

Eu ri. Admitindo minha covardia, ri e concordei que apenas transar sem reclamar seria atitude muito mais agradável. A puxei pelo braço e me adiantei pra perto dela, a envolvi pela cintura com força e colei minha boca junto à dela enquanto ela começava a me criticar mais um pouco. Criticar é até injusto. Na verdade, ela apontava minhas falhas e suas causas, e me indicava um caminho pra mudar as coisas que me irritavam, em mim mesmo. Mas é isso aí. Gratidão é algo que nós raramente temos por alguém que quer nosso bem e, pra nos ajudar, toca em nossa ferida.

Transamos de novo. A noite não caminhava, se arrastava. Estávamos no motel há menos de 3 horas, mas parecia que estávamos por lá há dias. O quarto tinha nosso cheiro. Um mistura do doce de seu perfume com o amargo do álcool e o azedo do meu suor. Já havíamos arrancado o lençol de quase toda a cama. Sexo barulhento, cheio de gemidos e sussurros de coisa alguma, mas quando nossos olhares se cruzavam durante a transa, nada interrompia ou tirava a sintonia. Impressionante. Só podia ser um anjo. Ela me salvava de mim mesmo, procurava me livrar de meus vícios os quais eu mesmo mais odiava, e ao mesmo tempo, me fazia sentir a vida com tamanha intensidade com absurda facilidade. Sua pele macia e cheirosa, sua mão pequena e delicada, e seu peito aberto e corajoso. Tão pequena e tão gigante.

Então, após transarmos, caí destruído na cama. Eu não tinha forças pra mais nada. Acendi outro cigarro e fechei os olhos. Ela deitou-se por sobre minha perna esquerda e veio até meu rosto, deslizando seu corpo sobre o meu. Me deu um beijo leve na boca, beijou meu nariz e testa, levantou-se e foi tomar um banho. Me senti jovem e forte com seu carinho. Me senti renovado, limpo e como se eu fosse alguém que tinha chance de ser desejado - graças a cada um de seus beijos. Acendi mais um cigarro, senti os olhos lacrimejantes enquanto minha boca expressava um sorriso sereno e tenro. Nada como uma mulher para nos trazer de volta à vida.

- Vem pra cá, meu bem - ela me chamou, em meio ao som abafado do banheiro e por trás da cortina de vapor.

Eu fui.

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