top of page

Deixar-se ou puxar a corda

Em queda livre, sem saber quando será o impacto ou se conseguirá abrir o paraquedas. Pode ver tudo passar rente a si, em uma velocidade acima do normal. O corpo é leve, mas de certa forma, por isso, pesa-lhe o espírito. Não vê o chão, mas sabe o quão alto esteve. Sem aromas para apreciar enquanto desce, pois o vento no rosto é tão forte que nada lhe fixa ao olfato. Os olhos ardem e mal conseguem ficar abertos, porém se mantêm secos e não se deixam fechar; talvez pela expectativa constante de chegar ao ponto final. Indefinível, apenas como algo que perturba seu sono, a angústia do desamparo divino e a liberdade de puxar a corda do paraquedas constitui a decisão mais amarga. Não é o medo de quebrar-se na queda, nem sequer o de safar-se dela. Mas a impossibilidade de dar um tiro certo por antecipação, de saber o fim, isto é o dissabor, mas é o que constitui seu viver-em-queda. Não se pode prever algo assim, não se sabe qual a sensação que será ao chocar-se no asfalto, nem como será escapar com vida sem maiores estragos, apesar de inegáveis sequelas, mesmo que a curto prazo. Não, e é nesta amarga queda - interminável - que se vê, sem o poder de fazer acontecer a seu modo aquilo que, antes de cair, desejara. Não, não se pode fazer acontecer apenas com o desejar, pois haveria de se combinar com os outros atores pra que tudo saísse direitinho, caso contrário, não há coerência entre o roteiro e a peça. De repente, vê o chão e seus tons de cinza-asfalto quente e acorda, em um susto!, arremessando-se pra cima com a força dos ombros e o coração a mil batimentos... olha ao redor, e no rádio relógio ainda são apenas 3h40 da manhã e no dia seguinte irá trabalhar.

bottom of page